De onde eu vim?

Texto da peça Festa (Colectivo A Tribo)

Sou luz. Uma luz com som dentro. Uma luz com ar dentro. Uma luz com toque dentro. Uma luz com amor dentro. Uma luz sempre acesa no meio de outras luzes. Um dia, essa luz virou-se do avesso e ficou ela por dentro. Por fora ficou o som, o ar, o toque e o amor. Aliás, com o amor aconteceu uma coisa diferente: ficou fora e dentro. E não só. Conseguiu trazer com ele tudo o que também estava lá fora. O fora e dentro fundiram-se. Deu-se a metamorfose. Deixei de saber o que estava lá fora e o que estava cá dentro. Como se fora e dentro as coisas se misturassem e eu não soubesse onde eu própria começava ou acabava. Como se fizesse parte de todas as coisas e elas parte de mim.

 

No sítio de onde venho há os opostos, os iguais e coisas que não se opõe nem se assemelham. Vivo nessa diversidade. E, às vezes, para a compreender melhor, ouso procurar-lhe semelhanças e diferenças. E, no entanto, é nessa incompreensão que reside a descoberta. Tão aliciante como assustadora. Às vezes vou, outras vezes fico. E ainda há vezes que fico a meio caminho indecisa entre o regresso ou o avanço. O abandono ou a persistência.

 

No sítio de onde eu venho há outras luzes como eu. De outras tonalidades. Não com mais nem menos brilho. Todas brilhamos com a mesma intensidade. Há, no entanto, uma competição de cores e as cores variam muito. Eu e as outras luzes existimos há muito tempo, há mais tempo do que a nossa própria consciência. Comunicamos por sinais. Temos visões diferentes. Usamos os sons, o ar e o toque de muitas formas. Temos muita imaginação. Quando nos juntamos, acontece algo curioso: as nossas diferenças parecem atenuar-se. Pelo menos por fora. Parece que sentimos necessidade de igualar os sinais das outras luzes. E elas os nossos. Queremos ser compreendidos e, muitas vezes, essa necessidade de compreensão ultrapassa a nossa própria necessidade de liberdade.

 

Sim, no sítio de onde eu venho cada luz nasce livre. Como se a liberdade fosse anterior à luz. Cada luz, no entanto, persegue a liberdade com a mesma ânsia com que persegue a segurança.

 

Não, no sítio de onde eu venho não há escuridão. Por isso, nem todas as luzes percebem que são luzes. Algumas acham que uma luz só é luz quando está escuro. E, por muito que tentem apagar outras luzes – para se poderem ver como luzes – não conseguem. Esquecem-se que nasceram luzes e que luzes morrerão.

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