Invisível

Texto da peça Festa (Colectivo A Tribo)

Sou invisível.

Sim, invisível.

 

Acordo para o mundo todas as manhãs. E todas as manhãs imagino um dia novo, cheio de possibilidades. E o que é que eu faço? Sigo as rotinas.

 

Sou moderada nos gestos. Segura no tom de voz. Que convém não ser nem muito alto nem muito baixo. Coloco o meu melhor sorriso. Aceno às pessoas e digo bom dia, boa tarde, se faz favor e obrigada. Quando me perguntam como estou, respondo: está tudo bem… tudo a andar!

Afinal, a vida está sempre em movimento, não é?

Se eu pudesse dar-me ao mundo como eu sou, se eu pudesse ser mesmo eu…

 

Ah! Se eu pudesse ria-me à gargalhada que nem uma doida só porque lá fora está sol…

Ah! Se eu pudesse chapinhava nas poças como uma criança nos dias de chuva…

Ah! Se eu pudesse vestia um vestido bonito só para ir comprar pão...

Ah! Se eu pudesse desatava a chorar como um bebé a pedir colo quando quero mimo…

Ah! Se eu pudesse gritava sempre que oiço um disparate ou uma injustiça…

Ah! Se eu pudesse abraçava-me a um desconhecido como se fosse o último abraço que vou dar…

Ah! Se eu pudesse dava um beijo repenicado na bochecha a cada pessoa com que me cruzo… só porque sim!

Ah! Se eu pudesse começava a bater palmas a tudo e mais alguma coisa quando falam comigo como se me estivessem a contar a melhor ideia do mundo…

Ah! Se eu pudesse cantava e dançava sempre que me apetece, sem me importar com o que os outros vão pensar...

Ah! Se eu pudesse ia caminhar junto ao mar todas as manhãs e ia tratar de um qualquer jardim todos os fins de tarde…

Ah! Se eu pudesse agarrava num cobertor e ia sentar-me ao lado de um sem-abrigo só para lhe fazer companhia...

Ah! Se eu pudesse agradecia todos os dias à minha mãe e ao meu pai por ter nascido e pelo amor que me dão, cada um à sua maneira...

Ah! Se eu pudesse ia ter com o meu avô, olhava-o nos olhos e, sem relógio, ouvia as histórias que ele tem para contar... e talvez o pudesse fazer sentir que a vida dele valeu a pena...

Ah! Se eu pudesse levantava-me mais cedo só para ver as minhas filhas acordarem todas as manhãs... e talvez pudesse lembrá-las que estão a despertar para um novo dia, cheio de possibilidades!

Ah! Se eu pudesse ser mesmo eu… Se eu pudesse dar-me ao mundo como sou…

 

Sou invisível.

Sim, invisível.

Acordo para o mundo todas as manhãs. E todas as manhãs imagino um dia novo, cheio de possibilidades…

E o que é que eu faço?

Alternância. Alterno entre máscaras. Alterno entre máscaras. E em vez de me dar ao mundo como eu sou, dou ao mundo aquilo que eu acho que ele aceita de mim.

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