Livro em branco

Gosto que as pessoas me olhem nos olhos. Mas não gosto que me vejam.

 

Um dia disseram-me que a vida era um livro em branco. Mas antes de me dizerem isso, escreveram nele.

Escreveram a que horas devia dormir e comer.

Escreveram quando eu tinha que vestir o casaco, eu não era capaz de saber quando estava frio.

Escreveram que ficava feia quando chorava.

Escreveram que não devia sujar o vestido.

Escreveram que brincadeiras físicas não eram coisa de menina.

Escreveram de que tamanho deviam ser as minhas saias e os meus decotes.

Escreveram que devia saber cozinhar e limpar.

Escreveram que devia casar.

Escreveram que ser mãe era a minha missão.

Escreveram tantas coisas…

 

Um dia disseram-me que a vida era um livro em branco. Mas antes de me dizerem isso, escreveram nele.

A determinada altura fiquei sem páginas para escrever.

Então decidi ler o que estava escrito.

 Quando li, senti…

A maior parte das coisas que escreveram no meu livro em branco não eram eu.

Mas quem era eu afinal?

Primeiro pensei rasgar as folhas… Mas uma coisa é ser um livro em branco, outra coisa é ser um livro sem folhas.

Como pode um livro sem folhas ser um livro?

 

Gosto que as pessoas me olhem nos olhos. Mas não gosto que me vejam.

Se me olharem bem nos olhos e ficarem lá tempo suficiente vêm-me por dentro.

E por dentro, neste momento, sou um livro sem folhas.

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