O coração do meu pai deixou de bater

Texto da peça Biografia Epitáfio (Colectivo A Tribo)

Percebi o que era a morte quando o meu pai morreu. Não um entendimento racional ou lógico. Senti o que era a morte quando o meu pai morreu. Foi no ano passado, aos 40 anos, que senti o que era a morte. Claro que eu já vivi com a morte antes. Claro que algumas pessoas morreram à minha volta. Claro que já senti dentro de mim mortes. Mas, até aquele dia, eu ainda não tinha sentido a morte na sua total dimensão.

Por volta das cinco da manhã, acordei em pranto. Soluçava. Chorava. Sofria. Sem saber porquê, aquela dor lancinante que me rasgava o peito, acordou-me. Nesse dia de manhã, o telefone toca e a notícia chega. O coração do meu pai tinha parado por volta das cinco da manhã. Em segundos que pareceram uma eternidade, a vida precipitava-se, a chuva escorria-me pela face e as vozes dentro de mim murmuravam: Porquê? Porque é que que não estavas lá para te despedir? Porque é que não foste mais presente? Porque é que não o abraçaste mais? Porque é que não foste capaz de o amar mais? Naquele momento, senti-me menos. Então a frase dele, numa das poucas conversas que tivemos, surgiu também no meio do aguaceiro: “Eu vejo que estás triste. A vida não é para isso. Onde é que está aquela menina cheia de alegria que tu és? A vida é para ser feliz”.

Não sei se o meu pai foi feliz. Sei que ele achava que a vida era para ser feliz. 300km depois, a distância de mim até ao corpo dele num caixão, eu senti que a vida um dia acaba. Nesse momento, no momento em que o meu pai morreu, decidi viver antes de morrer.

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